Dispo-te com um olhar...
relutante... com suavidade
da tua pose altaneira e fugidia...
Desço esse olhar pelos contornos difusos
que a luz mortiça me permite ver.
A janela tem vista para o nascer do Sol
que não aparece entre os sinais da cidade adormecida.
Hoje não se espera nada de novo do dia
por isso estás deitada entre lençóis gastos e sujos
de olhos fechados... a olhar sem me perceber.
Voam barulhentos os pardais... perdidos de rumo
neste dia hesitante que não chega aos beirais.
A porta está fechada como tu.
Nada para lá dela... se comove com o tempo
que escorre como um ribeiro de águas paradas.
Mudas a posição descuidada e indolente
está o café no fogão ainda quente...
mas sem calor que se veja nem cheiro que te acorde.
Nada se move neste quarto de forma continuada
a não ser o pó que permanece no ar dançando
ao ritmo das nossas respirações desalinhadas.
O horizonte nada promete nem a realidade.
O céu coberto de estranhas formas cinza e negras
impregna o tempo de uma saudade sem tempo.
Passo o olhar de ti para a folha de um livro bolorento
que me chega à alma com o vento de outros dias
que levou as letras que um dia desejei ler.
A claridade que transmites no teu jeito insolente
não deixa ver mais que a tua sombra confusa
como os sentimentos que por mim passam.
Abandono as folhas vazias e acendo um cigarro
do tamanho possível de vislumbrar no rasgo da luz que já tarda.
Cheira a mofo o espaço em que a vida vegeta
o café seca de cansaço numa borra abjeta
que permanece colada às bordas do vaso já tão sujo
como às bordas da pedra o musgo esverdeado se apega.
Passeio em passos curtos no espaço que resta
no quarto sala e caixão em que se tornou este quadrado de tempo
ficando inocente a olhar a semente que já não és.
Sou como que um adubo estragado assim para mim.
Ao longe parece que um trovão nasce e cresce
agitando o silêncio sepulcral em que o dia se
pareceu tornar.
Venha um pouco de chuva de cima já... para o ar agitar
lavar a visão presa de movimento.
Sente-se uma aragem que movimenta o pó parado.
O movimento deixa-te agora de lado...de costas
tiro o corpo de pé e deixo-me sentado.
Vejo melhor de lado a tua parte menos despida
e as folhas já tremem no livro de letras paradas.
Os pardais saíram por fim como bandos de loucos aprisionados.
A água vinda de cima dá vida de novo ao ribeiro estagnado.
Nada parece o que há pouco era.
Sente-se no ar uma aragem do norte que insufla nos corpos coragem
saída de novo do mais profundo do ser... se calhar mais forte...
numa enorme Primavera de dias de procura para melhor sorte.
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