Recordo muito bem
o lento fechar da porta
e o quão triste foi descermos as escadas
perante os sinais da doença inadiável
que nos olhos baços fazias por disfarçar.
Olhaste em redor resignado num adeus silencioso
ao mundo que para trás e para sempre deixavas
sabias isso e eu também.
Partimos os dois
entre palavras gastas inúteis vazias repetidas.
Fiz mal... devia ter percorrido
a beira-mar para um último e lento passeio
em renovado olhar teu ao azul imenso do mar
que no tempo me deixas-te amar.
Faço-o ainda hoje e penso nesse tempo
sempre que a maresia me chega na aragem
sabendo que por assim ser... meus olhos
não te esquecendo eu... são os teus
vendo o que não foi então possível ver.
Percorro a cidade ao anoitecer
ofuscado em brilhos de montras da vaidade
ementas penduradas em frases apelativas
e portas rotativas
pra interiores de prazer.
As ruas estão perdidas de interesse
vitimas de falta de alma e chama.
O papelão é colchão e saco cama
cruzado por passos silenciosos
e gastos.
Percorro a cidade ao anoitecer
iluminado por néons de caridade
armazenada em filas de fome
organizadas
que a cidade maior não quer ver.
Uma vela treme a chama
nas mãos de uma criança
um arrastar de pés indolente
uma bengala abandonada de gente
um cão quase a esquecer o destino
uma porta de capela trancada.
A eterna sombra que tudo abraça
lentamente tudo cobre e avança
esvaziando o doer.
Até de novo ser dia.
Até de novo anoitecer.