1960 +/-
Esta aventura foi partilhada pela minha irmã, que tinha e ainda tem uma certa propensão para as coisas do Carnaval.
Alembrou-se por isso de numa noite meio chuvosa mascarar-se ela e ao irmão pequeno (eu).
Arranjámos (melhor arranjou) uma maneira de com lençóis,umas farinhas e mais uns toques de batôn vermelho vivo de modo que a ficar-mos assim a modos que uns fantasmas mal arrumados.
O alvo da nossa brincadeira era a nossa vizinha para começar a noite.
Lá fomos, (eu atrás), pé ante pé com uma vassoura ou duas às costas, preparados para pregar um grande cagaço.
Subimos as escadas batemos à porta e quando abriram demos uns gritos e do lado de lá, também deram ainda mais gritos.
O problema começou justamente pelos gritos.
Do lado dos assustados os gritos multiplicaram-se por todos e nós assustados descemos a quatro as escadas para fugir da gritaria gerada e das pauladas prometidas.
Corremos (era noite cerrada) rua abaixo embrulhados nos lençóis e no susto que se tinha virado contra nós.
Atrás de nós corriam os alvos da nossa inocente partida com vassouras, paus, e gritos de «agarra estes malandros que iam matando a Avó e assustaram as crianças».
Só nos restava mesmo fugir para não ser descobertos.
Em casa, a nossa Mãe assistia à tourada provocada por tão simples brincadeira de boca aberta entre persianas .
Lá fomos e nos embrenhámos por um terreno enlameado que descia até junto ao ribeiro que hoje bordeja os campos da pétanca.
Atrás vinham os paus, pedras e a gritaria que não parava de aumentar...«Malandros...vão levar... havemos de os descobrir...cabrões » e outros adjectivos que na fuga só ouvíamos por metade.
Passaram-se neste escabeche pelo menos duas horas e duas horas passámos nós embrulhados em medo, lençóis, lama e frio, deitados debaixo da escuridão e em cima da terra baldia molhada e "fôfa" de tanta chuva que caía.
Para agravar a situação, a lista de perseguidores aumentou com mais um elemento da familia que descansadamente ia para casa vindo do trabalho mas que, perante o arraial montado se juntou à caçada dos fantasmas.
De fantasmas já nada tínhamos, éramos mais parecidos com umas almas penadas tal o estado em que nos encontrava-mos.
Passou aquilo que nos pareceu uma eternidade e nós deitados no escuro e nos tremores já de frio a valer.
Estavamos molhados, descalços e sem saber o que fazer a não ser estar escondidos.
Lentamente, os nossos pretensos carrascos, perante a frustração da perseguição e porque também já o frio o cansaço e a rouquidão os abanava, foram-se afastando de regresso a casa.
Permanecemos à cautela mais uns largos tempos emboscados na papa de lama que nos envolvia, já não sentía-mos a chuva nem a sujeira que se nos tinha agarrado aos lençóis aos pés ao batôn e à brilhante ideia original que tinha criado tal pandemónio.
Apenas o frio nos cavalgava e tremíamos, já não de medo mas da suspeita que a tourada podia começar de um momento para o outro ao irmos para casa.
Num estado digno de dó, lá fomos de lençóis ás costas,cansados e barrentos dos pés à cabeça e sem vassouras (dando uma grande volta por outros terrenos) a caminho de casa.
Com a brincadeira, já passava da meia noite quando saltámos o muro para o nosso quintal ao arrepio de tudo e todos.
A nossa mãe estava zangada e arrepiada do burburinho que tínhamos (tinha a autora moral) arranjado com as ideias carnavalescas.
Foi o banho que nos salvou e limpou as mazelas daquela noite inesquecível.
De uma simples partida de carnaval a noite tinha-se colorido acima das nossas expectativas iníciais.
Passámos de assustadores a assustados e de fantasmas reluzentes e decididos, a uns autênticos montes de lama e frio.
Por muito tempo se falou dos fantasmas e muito se alvitrou sobre quem teriam sido os tratantes, mas passámos incógnitos penso que muitos anos.
Claro que a culpada mór da cena embora (tal como eu) não ganhando para o susto, ainda hoje está pronta para uma partidinha do género.
O pior é se é de novo preciso fujir.