quinta-feira, 21 de julho de 2011

"HISTÓRIAS DA ÁGUA DO MAR" III

A cidade de Rotterdam tem para mim um sabor especial  por várias razões: Algumas familiares.
Começando pelas não familiares, recordo os tempos  do Florim e os tempos em que víamos manifestações contra o Regime ainda Fascista  e que eram fomentadas pelos milhares de Cabo- Verdianos que já nessa época eram uma grande comunidade na Holanda.
Para nós nada habituados a grandes cidades era tentadora a visita e percorremos com denodo todas as ruas e avenidas todos os cantos e canais onde perdemos tempo e ganhámos conhecimentos ao calcorrear um mundo de costumes e modernidades de todo nunca por nós imaginado.

O nosso navio estava atracado junto a uma torre turistica daquelas que agora por todo o Mundo  existem  com o seu restaurante rotativo a irradiar luz  lá bem no alto.
Tal facto, era-nos extremamente útil para qual farol nos orientar  nas nossas deambulações nocturnas ao permitir que soubessemos sempre a direcção a que teríamos de rumar  quando o cansaço aparecesse.
Eram longas as caminhadas que diáriamente eu e um camarada mais chegado faziamos vasculhando assim tudo o que nos parecia ser novo quer fosse discoteca , pub ou botequim.
De noite a nossa procura cultural  era substancialmente reduzida a dois ou três motivos.
Saímos em determinada noite para a ronda noturna com a particularidade de irmos fardados a rigor, dava mais pica achámos na altura e afugenta um pouco mais o frio e os enganos.

A nossa actividade na prática resumia-se a entrar (quando abriam a porta) dar uma vista de olhos pelo ambiente e depois saír com uma desculpa esfarrapada, quase sempre por que os florins estavam "curtos", e o que queríamos mesmo era "cuscar"os ambientes.

A dificuldade em falar o Holandês ou seja o não falar nada o Holandês era também um dos motivos porque a conversa ou melhor a  falta dela tornava dificíl  proporcionar grandes estadias ou grandes esclarecimentos.
Navegávamos sem rumo definido mas sempre de olho na torre.
Entrávamos e saíamos de portas e portas sem fim e assim se passavam  noites de passos mais ou menos perdidos.
De admiração em admiração (para lá da falta de florins) sempre despercebidamente algo ficava na nossa memória.
Uma noite, numa viela mais estreita e com  um certo mau aspecto, vimos um negro a fazer sinais para entrarmos num prédio velho de onde saíam  em ondas alterosas sons de uma  musica indefinida  mas que  logo nos disse não ser do nosso dia a dia musical .
Subimos umas escadas de madeira até um terceiro andar prestes a cair para o segundo e atravessámos rumo ao centro da musica e ao centro de um mundo de droga e mais os condimentos a ela associados.
Era um ambiente assustador para duas pequenas almas quase virgens nestas andanças e ainda por cima de uniforme. O choque e surpresa dos convivas era quase tão grande como o nosso.

Desde corpos desnudos pelo chão, a mil ofertas de droga, de tudo um pouco tivemos de sobra e tivemos de polidamente num inglês cheio de fumo recusar apontando a medo para o facto verdadeiro de sermos militares.
Ali nos ficámos com pressa de voar  ao mesmo tempo que  uns quantos florins para duas cervejas (obrigatório) naquela situação, voaram a contragosto dos nossos bolsos.
Foram as cervejas mais rápidas que bebemos tendo em conta que poucas conseguimos por aquelas terras beber, tal era o aperto e a necessidade de mostrarmos serviço e abreviar a estadia naquele local nada apropriado para "petits enfants terríbles" como pensávamos ser.

De lá saímos, acabando por reconhecer que todos e todas tinham sido bastante simpáticos e atenciosos connosco, a farda afinal tinha sido uma boa aposta, tivemos de tudo à disposição.
Quando descemos já nem o negro (o porteiro) encontrámos, nem a direcção em que seguíamos antes era agora para nós certa.
Bem... A olhar para o ar, numa viela não é fácil descobrir uma torre se ela está a alguns kms.

Apostámos para a direita, passo curto e mais ligeiro ao mesmo tempo que nos atropelávamos nas palavras sobre os inesperados e últimos acontecimentos.
Sentiamo-nos até com uma certa dose de sorte por ter tido o previlégio de ter entrado e ter (mais importante) saído de um lugar tão "especial" e tão pouco frequentado pela fauna Lusitana que representáva-mos.
Estavam as emoções daquela noite mais do que conseguidas.
Apenas bastava agora chegar ao fim da "viela direita" e em campo mais aberto olhar para a nossa torre e para o nosso beliche merecido mesmo, mesmo junto a ela , quatro e meia da manhã, o frio estava-se a tornar pesado.
A passo vigoroso lá fomos pelo escuro que parecia não ter fim.

Estava contudo escrito que naquela noite e naquela rua as surpresas ainda não tinham acabado e nisso reparámos quando entre o ruído dos nossos passos e conversas se começou misteriosamente a intrometer um trinar que só podia ser Português e que parecia  querer tropeçar em nós saído duma madrugada agreste e fria que despontava num horizonte que ainda não vislumbrávamos.
Primeiro secos e repartidos pelo vento, depois mais cheios e quentes, depressa perdemos as dúvidas de que pairavam pelo ar em crescendo os sons de guitarrras Portuguesas concerteza  acompanhados do murmúrio que se fáz quando em grupo trauteamos o fado.
E era de Coimbra dissemos estugando o andar.
Cantava-se o fado às cinco da manhã na Casa de Santarém em Rotterdam  e "Coimbra tem mais encanto na hora da despedida".
Nessa porta entrámos transbordantes de frio e confiança. Lá dentro o fado enchia o ar e os nossos amigos de bordo meio bebidos e num nevoeiro de fumo acompanhavam tão suave quanto possível o conjunto de guitarras e o fadista do momento.
Acabámos por ficar para aquecer e para esquecer.
Giravam por ali não florins mas escudos, o que nos deixou mais à vontade, a cerveja passou de cara a barata e a nossa disposição de caminhantes com sorte a sortudos caminhantes.
Era manhã e mais dois passos menos firmes deixou-nos à vista da torre distante e que tão perdida estivera antes de "Coimbra" encontrarmos.

Passados desde esses tempos 34 anos, também quem sabe se aquela torre serviu de guia para  quem me é muito querido na vida e que dançando passou correndo... pelas ruas de Rotterdam .

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